quarta-feira, 7 de setembro de 2016

O Brasil na Era de "Aquarius"


Sonia Braga_Aquarius_divulgação_http://bangalocult.blogspot.com
Clara (Sônia Braga) descansa na rede após uma noite "tenebrosa"


Pode-se dizer que "Aquarius", novo filme de Kléber Mendonça Filho, já é um sucesso de público. Levando em consideração a censura- 16 anos-,  o fato de ter estreado em pouco menos de 90 salas pelo país e não ser uma dessas comédias blockbusters, ainda assim, contabilizou nos quatro primeiros dias de exibição, 55 mil espectadores. Seria a curiosidade em ver Sônia Braga na telona, 20 anos após "Tieta", o maior motivo para correr aos cinemas ? Ou descobrir o porquê do Ministério da Justiça, num primeiro momento (diga-se, equivocadamente) determinar que a censura fosse 18 anos, depois baixando para 16 anos ?

Prefiro acreditar que o público tenha procurado assistir a "Aquarius" pelo boca a boca positivo, devido às suas virtudes. Que não são poucas. A primeira delas seria a abordagem ousada (e digna) do diretor e roteirista, Kléber Mendonça Filho, quanto ao assunto sexualidade na terceira idade. Clara (Sônia Braga, em estado de Graça) é uma crítica musical sexagenária, viúva, que vive num apartamento na Praia de Boa Viagem, em Recife. Com os filhos independentes, ela ocupa o tempo livre ouvindo sua coleção de vinis, passeando pela praia e saindo com amigas, a fim de "agitar" nos bailes dedicados ao público mais maduro. Clara não se reprime e desfruta de sua feminilidade com a mesma desenvoltura e vitalidade de quando jovem.

A história de "Aquarius", aliás, começa nos anos de 1980. Já casada e com filhos pequenos, Clara (vivida pela atriz mineira, Barbara Colen, na juventude) promove uma festa de aniversário para a tia Lucia (Thaia Perez). A família não poupa elogios à senhora "revolucionária" que enfrentou a Ditadura Militar e a sociedade patriarcal e sexista. Entre uma fala e outra dos pequenos oradores, filhos da protagonista, Lucia viaja em suas lembranças, fitando um móvel da sala, palco de suas travessuras sexuais. Enquanto "Toda Menina Baiana", de Gilberto Gil, vai tomando conta do ambiente festivo, somos transportados através do tempo.

Três décadas e meia depois, encontramos Clara morando no mesmo local, às voltas com um imbróglio: uma construtora que já comprou todos os outros apartamentos do edifício "Aquarius", pressiona a jornalista para vender o seu. Ela resiste, ignora a oferta dos empresários- o avô (Fernando Teixeira) e o neto, Diego (Humberto Carrão)-, e sem querer, declara guerra aos dois. Aqui encontramos outro ponto positivo do segundo longa de ficção, do cineasta pernambucano, que é a discussão em torno da disputa por espaço nas grandes cidades. Não é de hoje, que as orlas nordestinas vêm sofrendo grandes impactos urbanísticos, mas talvez, Mendonça Filho tenha retornado ao tema (em "O Som ao Redor", o velho Francisco, é proprietário de metade dos imóveis de um quarteirão de Boa Viagem) com mais vigor, inspirado no episódio de 2014, conhecido como Ocupe Stelita, quando parte da população recifense se mobilizou contrária à construção de 12 prédios de 40 andares, no Cais José Estelita, Bacia do Pina.

Os métodos utilizados por Diego, para confrontar Clara, ficam cada vez mais perigosos, de modo que a empregada Ladjane (Zoraide Coleto) e os filhos Martin (Germano Melo), Rodrigo (Daniel Porpino) e Ana Paula (Maeve Jinkings) temem pela sua segurança. Ana Paula, porém, em dificuldades financeiras, pela recente separação, é a única que pressiona a mãe a desocupar o prédio e realizar um "bom negócio", negligenciando todo o valor afetivo que a matriarca nutre pelo imóvel. O embate de gerações e de princípios faz-se presente, não só na relação da mãe com a filha, mas também entre Clara e Diego. O almofadinha não irá medir esforços para realizar seu primeiro projeto arquitetônico, após o retorno de uma especialização no exterior. Seus métodos escusos, gradativamente, vão acuando Clara em seu próprio terreno, mas esta, com a ajuda do salva-vidas Roberval (Irandhir Santos) e  da amiga advogada Cleide (Carla Ribas) vai se defendendo como pode e decide dar uma cartada de mestre, contra o inimigo.

É incrível como o diretor Kléber Mendonça Filho renova-se, mesmo se repetindo, em alguns temas e personagens. Quem conhece sua filmografia (de curtas e longas) percebe como ele amadureceu ao longo dos anos, desde "Enjaulado" (seu primeiro curta, lançado em 1997)  até seu trabalho em cartaz. Se "O Som ao Redor" pode ser visto como um "filme tese", "Aquarius" convida-nos a uma experiência afetiva, embalada por uma trilha sonora de excelência (com direito a ouvir "Hoje" de Taiguara; "Pai e Mãe" de Gilberto Gil"; "O Quintal do Vizinho" de Roberto Carlos; "Another One Bites The Dust" de Queen, entre outras) e com um elenco afinadíssimo (a ótima direção de elenco reflete no domínio de mise-en-scène) que parece fazer seus personagens, nossos amigos íntimos.

Independente de ser o filme brasileiro escolhido pela comissão julgadora do Ministério da cultua, para representar o Brasil na categoria de melhor Filme estrangeiro, no Oscar 2017, "Aquarius" já é vencedor, por ser um símbolo da resistência contra a mídia desvirtuada, contra o poder oligárquico que ainda impera no nosso país, por escancarar o lado cínico e hipócrita da nossa sociedade.

P.S. Só faltou Clara botar na vitrola a canção homônima, interpretada pelo The Fifth Dimension, para a gente entoar

"Harmony and understanding
Sympathy and trust abouding
No more falsehoods or derisions
Golding living dreams of visions
Mystic crystal revelation
And the mind's true liberation
Aquarius!
Aquarius!"

5 comentários:

Unknown disse...

Filme instigante,afetuoso,pulsante...!

Unknown disse...

Filme instigante,afetuoso,pulsante...!

Victor Luís | @_victo disse...

Concordo e assino contigo! relacionei o filme muito com o estado político e social que o Brasil vive atualmente, grandes construtoras, injustiça social e a mídia manipuladora. Excelente texto!

Iza Foz disse...

O filme é lindo. A personagem Clara foi construída em doses perfeitas de cada coisa: moderna sem escamotear a nostalgia, sensível e forte, independente, mas a léguas de distância do feminismo histérico, expõe as práticas das construtora de forma prática, longe dos excessos discursivos. Trilha sonora sensacional, contextualização do personagem na medida, atuações impecáveis, enfim, filmão.

Iza Foz disse...

... e, faltou dizer, graças a Jah não demoniza a classe média, o que fica bem claro quando ela enumera o seu patrimônio.