quinta-feira, 14 de julho de 2011

"Uma Duas" : livro arrebatador


A jornalista Eliane Brum, que esteve em Aracaju no mês de abril, ministrando um curso de Jornalismo Cultural pelo Programa  Rumos Itaú Cultural, lançou, recentemente, mais um livro. Dessa vez, porém, a gaúcha de Ijuí, que aprendeu a ler aos sete anos, quando se alfabetizou, deixou de lado suas experiências como repórter do Jornal Zero Hora e da Revista Época, respectivamente, publicadas em “A Vida Que Ninguém Vê” (2006)- Prêmio Jabuti de Melhor Livro de Reportagem- e “O Olho da Rua” (2008) e enveredou pelo universo da ficção.

“Uma Duas” que sai agora pela Editora LeYa é sua estreia na ficção. Um excelente début, aliás, que deverá surpreender até os leitores acostumados com o seu talento em escrever crônicas-reportagens. Neste romance, Eliane Brum trata de forma visceral da relação dramática e perversa entre uma mãe e uma filha. Mas não pense que os clichês e eufemismos que costumam cercar o tema estão presentes neste livro.
Pelo contrário, com extrema sagacidade, Eliane nos faz mergulhar a cada página, na trama de ódios e afetos entre duas mulheres (des) unidas pela carne, mas de uma forma bem particular, intercalando três vozes narrativas, sem perder o fio da meada.

Acumulando no currículo mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de reportagem, como Esso, Vladimir Herzog, Ayrton Senna, Rei de Espanha, Sociedade Interamericana de Imprensa e Troféu Especial de Imprensa ONU, Eliane Brum, que atualmente, assina uma coluna no site da Época, é uma leitora e escritora voraz que já declarou em entrevista que escreve para poder viver. “Escrevo porque pra mim não existe vida fora da palavra”.

A seguir, o internauta pode conferir a entrevista exclusiva com a jornalista/escritora. O livro "Uma Duas" já pode ser adquirido na Livraria Escariz.

Eliane, uma expressão que me chamou a atenção na apresentação de “Uma Duas”  foi "obra de abalar as estruturas, sejam elas quais forem". O que tem de tão contundente neste livro ?


Eliane Brum- Só você pode me dizer (risos). Ou a autora deste texto, divulgado pela LeYa, pode explicá-lo. Foi assim que ela sentiu. Cada leitor é um escritor, também, na medida em que continua escrevendo o livro. Não haverá duas leituras iguais. Quem escreveu esta frase, depois de ler o livro, teve essa interpretação, que me deixou muito contente. Porque acredito que a literatura tem de perturbar, precisa tirar o leitor do lugar. Eu, pelo menos, gosto dos livros que “abalam as minhas estruturas”. E espero que o meu tenha esse efeito. Sempre pergunto para as pessoas que leram meu romance: “Te perturbou?”. Em geral, dizem que sim. E eu fico toda feliz. 
Até que ponto esse romance "Uma Duas" não tem um 'quê' de autobiográfico ?


EB- Minha filha, Maíra, tem 29 anos. Minha mãe, Vanyr, tem 76. Faço questão de enfatizar que este não é um livro autobiográfico, até porque a maioria das pessoas está acostumada a me ler como repórter, como contadora de histórias reais. Este livro é uma ficção, meu primeiro romance. Portanto, nem é a história da minha relação com a minha filha, nem a história da minha relação com a minha mãe. Mas, em certo sentido, é a minha história e a de todas as mulheres, na medida em que a grande questão feminina talvez seja como uma filha se arranca do corpo da mãe e como uma mãe larga o corpo da filha. Este é um tema universal.

Esta questão do corpo é muito forte. Por isso entendi que a palavra, a letra, tinha de ser encarnada também no papel. Cada narradora tem uma fonte (tipo de letra, para explicar aos leitores que não são do mundo editorial) diferente, porque cada uma tem um corpo diferente – quer ou precisa ter um corpo diferente, este é o embate entre mãe e filha no jogo das palavras. Já escrevi assim no original. Se não tivessem fontes diferentes, as narradoras se recusavam a falar. Por isso, também, por causa desta palavra encarnada, as letras não são em preto sobre branco, mas em laranja ou ferrugem ou vermelho, percebi que cada leitor interpreta a cor de um jeito. São letras que sangram. A história contada pelo corpo das palavras no papel é uma outra camada narrativa do romance.

Quem acompanha suas reportagens há  tempos, percebe que você tem o dom da escrita poética. Apesar de ser um romance, esse livro de estreia no gênero, possui características inerentes ao estilo Eliane Brum de escrever ?


EB- Eu sempre escrevo com tudo o que sou. Neste romance, não foi diferente. Não sei se sou poética. Gosto de dizer que no jornalismo não há licença poética, para fazer bom jornalismo é preciso que o repórter faça uma apuração muito precisa e detalhista, checada e re-checada muitas vezes. Mas acho que, embora não exista licença poética na reportagem, pode haver poesia, na medida em que a poesia é constituída pela matéria da vida.
Este romance é uma outra voz minha, que talvez surpreenda quem está acostumado a ler as minhas reportagens. Ele surge a partir da necessidade de uma nova voz para me expressar. Nos últimos anos, depois de mais de duas décadas ouvindo histórias de gente nas mais variadas geografias, percebi que há certas realidades, certas verdades, que só a ficção suporta. Esta percepção tornou-se primeiro um incômodo, depois uma insônia. Então, escrevi ficção por necessidade interna. Para poder seguir com a minha vida. Na reportagem, nos esvaziamos (de nossos preconceitos, de nossa visão de mundo) para nos deixarmos possuir pela voz do Outro. Na ficção, é o avesso disso. É  uma possessão do nosso corpo pela nossa própria voz. Só que uma voz – ou vozes – que vem dos nossos subterrâneos, que não sabíamos que tínhamos. Neste sentido, foi uma possessão de mim por mim. Algo extremamente profundo, brutal e que abriu em mim uma fissura para sempre. 

Quais são, na atualidade, os escritores que lhe emociona?
Eu sempre li de tudo. Tanto os livros dos cânones, os clássicos, como obras mais populares, como, por exemplo, “Harry Potter” e “Millenium”. Leio todos os dias, leio para viver. Acabei de ler o primeiro romance do José Castello, “Ribamar”, e fiquei muito emocionada. Sou louca por Philip Roth e estou na porta da livraria no dia em que o livro desembarca na prateleira. Mas acho importante dizer que sou tão influenciada pela literatura escrita, como pela oral. Nestes 23 anos em que sou repórter, tive o privilégio de ouvir gente de todas as geografias. E sempre fiquei impressionada com a sofisticação de linguagem do povo brasileiro. Os achados, as palavras inventadas. Diante de alguns analfabetos que me contavam suas vidas, me descobri fascinada, pensando: “Nossa, essa pessoa está fazendo literatura pela boca”. E estava. Acredito que, se tivéssemos uma educação pública de qualidade, o que estamos longe de ter, a literatura brasileira seria muito mais rica do que já é – tão rica quanto é a literatura oral do Brasil. 

Com relação à crítica literária brasileira, o país está  bem dotado de críticos competentes, que realmente sabem o que estão avaliando? 

EB- Não saberia dizer. Não gosto de falar sobre o que não estudei, não pesquisei. Como leitora, identifico uns poucos grandes críticos, sim, profissionais e pessoas respeitáveis que avaliam os livros com honestidade e conhecimento e cujo trabalho faço questão de acompanhar. Mas também percebo que existem aqueles que se limitam a destruir uma obra em tom cáustico, como se a capacidade de destruição fosse uma qualidade por si, desse um valor àquele que critica. Quando percebo essa característica, paro de ler imediatamente. Acho que o leitor não é bobo. Para mim, e acho que para a maioria, a escrita só vale se for honesta, embasada, seja uma crítica ou um ensaio ou uma reportagem. A gente percebe a intenção de quem escreve quando lê. 

Como é vender livro num país onde os nomes dos tops sempre estão em evidência, mas pouco se sabe sobre o trabalho dos jovens escritores talentosos ou mesmo do que se produz de bom na América Latina?


EB- Eu não penso muito nisso. Escrevi porque precisei. E acredito que quem precisar do meu livro vai ler o meu livro. Não tenho nem a ilusão nem a pretensão de me tornar uma popstar da literatura. Adoraria, claro, vender um milhão de livros, mas acho que o tema e o estilo do meu romance não se prestam a esse tipo de sucesso. E aí não vai nenhum juízo de valor, porque, como já disse antes, alguns best-sellers, como a saga inteira do “Harry Potter” e os três volumes do “Millenium”, fizeram-me imensamente feliz. Mas, tomara que eu esteja enganada, e muita gente “me leia”. Vamos ver o que vai acontecer com o meu “Uma Duas”. Agora, ele é do mundo e não tenho o menor controle sobre o que vai ou não acontecer com ele. Ainda bem. 

Você pretende junto à  editora, fazer uma turnê de lançamento, pelas principais cidades do país, de "Uma Duas"?
Lancei em Porto Alegre, que foi minha cidade por muitos anos, e em São Paulo, onde vivo há  11 anos. Não sou famosa o suficiente para fazer uma turnê pelo Brasil, quem sabe um dia... (risos). Mas vou lançar em outras capitais, como Curitiba e Recife, em eventos literários do qual participarei como palestrante. Onde me convidam, eu vou. 

Num mundo cada vez mais tomado pelas novas tecnologias, e uma parcela da população se tornando "escrava" do twitter, você tem esperança que o brasileiro consiga se tornar um leitor voraz?  

EB- Eu mesma sou uma “tuiteira”. Acho o twitter um instrumento poderoso de divulgação e troca de informações. Também acompanho os saraus de poesia e de literatura nas periferias do Brasil, especialmente na periferia de São Paulo, e vejo cada vez mais, gente lendo e escrevendo. O sarau da Cooperifa, por exemplo, é o maior sarau de poesias do Brasil. Toda quarta-feira, há dez anos, cerca de 200, às vezes 300 pessoas – domésticas, taxistas, mecânicos, professores, secretárias, balconistas etc -, vêm de todas as partes da Grande São Paulo, enfrentando horas de ônibus, metrô e trem depois do trabalho, apenas para ouvir e dizer poesia. É uma cena poderosa.
O Brasil está  mudando, mas da periferia para o centro, por isso nem sempre esse movimento é percebido. A internet foi fundamental para essa transformação, ao ampliar as vozes narrativas, dando possibilidade a todos de contar a sua história. Eu mesma, hoje, escrevo regularmente na internet - às segundas-feiras no site da revista Época e, às terças, no site de crônicas Vida Breve. Pela primeira vez não temos mais o limite do papel, do preço do papel, e a disputa de poder no espelho dos jornais e revistas. Em pouco mais de dois anos de coluna, meu texto mais lido, se publicado na revista impressa, precisaria de quase 30 páginas. E foi o mais lido, porque as pessoas querem ler, desde que seja relevante e se identifiquem. Por coincidência, esse texto é uma entrevista com uma mulher extraordinária chamada Débora Noal, psicóloga dos Médicos Sem Fronteiras, gaúcha que escolheu viver em Aracaju.

Crédito da Foto: Lilo Clareto

4 comentários:

Natália Vasconcellos disse...

Que delícia ler Eliane Brum, até sendo ela a entrevistada. Consigo ouvir seu jeito manso de falar.
Já tenho um de seus livros de reportagens e estava com vontade de ler este novo "Uma Duas". Agora, depois desta entrevista, certamente vou comprá-lo e lê-lo. Ela me perturbou.

Unknown disse...

Li hoje o livro "Uma Duas"
Achei muito lindo, muito criativo em seu modo de escrever e envolver o leitor, fiquei emocionada a maior parte do tempo... Parabéns, ótimo livro!!!!

Unknown disse...

Li o livro hoje, achei ótimo, um jeito de escrever que envolve o leitor e me deixou emocionada a maior parte do tempo!!! Parabéns......

Bangalô Cult disse...

Deisi, eu acompanho o trabalho jornalistico da Eliane Brum, há um bom tempo e, sempre que possível, leio sua coluna semanal no site da Época. Para mim, em "Uma Duas" ela só confirma seu imenso talento para a escrita.
Quem bom que o Bangalô Cult te instigou a conhecer esse livro da escritora. O mais novo dela é "A Menina Quebrada e Outras Colunas".
Boa leitura!!!