sábado, 15 de setembro de 2018

51o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro (Primeiro Dia)

Depois de duas horas e meia de atraso e com o público que lotava as dependências do Cine Brasília , um tanto irritado, foi dada a largada, na noite de ontem, à 51a edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Os atores Chico Díaz e Letícia Sabatella comandaram a apresentação num tom descontraído, sem deixar de aludir, vez por outra, em tom de protesto, ao preocupante cenário político que se instalou no país nos últimos tempos.

Feitas as devidas homenagens ao professor e crítico Ismail Xavier e ao pioneiro da cultura brasiliense Walter Mello, ambos agraciados com a Medalha Paulo Emílio Salles Gomes, a cerimônia prosseguiu com a entrega do Prêmio Leila Diniz, à montadora Cristina Amaral e à atriz Ítala Nandi. Da mesma forma que o público aplaudiu entusiasticamente, a atriz, diretora e produtora gaúcha,  manifestou-se contrariamente ao  "monopólio" de Nandi com o microfone, quando ela interrompeu o discurso de Cristina Amaral. "Deixa ela falar", gritou uma voz feminina da plateia. Algumas palmas e resmungos vieram em seguida.

Cristina Amaral, no entanto, não só falou com propriedade sobre a participação das mulheres no audiovisual brasileiro, como, elegantemente, justificou como necessária, a interrupção feita por Ítala, pois o conteúdo dito, era relevante. Os ânimos acalmaram, por parte do público intransigente, e a cerimônia prosseguiu com a apresentação do curta documentário "Imaginário" do diretor Cristiano Burlan  e do longa-metragem "Domingo" de Clara Linhart e Fellipe Barbosa.

Sobre a ideia do curta de Cristiano Burlan, ela surgiu após o realizador de "Mataram Meu Irmão", "Fome" e "Elegia de Um Crime" decidir rodar "Em Busca de Borges" (2016) e viajar ao pequeno país europeu, atrás de material de arquivo referente Jorge Luis Borges. Não só realizou uma ficção, sobre o escritor argentino, como a partir de um acervo audiovisual de pouco mais de 70 minutos,  Burlan deu vida a "Imaginário", um documentário recheado de imagens  muito bem preservadas,  que revelam o cotidiano de uma cidade em vias de modernização, com cenas de estações de trem, do trânsito do centro urbano, desfiles militares e anônimos, visivelmente, intrigados com o "olho do cinematógrafo" que lhes fitava.

Olhando o filme, desatentamente, pode-se imaginar que aquela realidade diz respeito a São Paulo ou Rio de Janeiro do início do século XX. Principalmente, porque algumas legendas inseridas no filme, guiam-nos, pela História do Brasil, assinalando fatos marcantes da política brasileira desde o primeiro mandato de Getúlio Vargas. Aguçando a visão, no entanto, observamos que alguns letreiros de lojas ou placas de logradouros indicam que a localidade é estrangeira.

Esse choque entre imagem e discurso, irá se acentuar, a partir da inserção de discursos originais de políticos brasileiros, no período pré-ditatorial, dos anos de 1960. O ponto alto do filme é o discurso proferido pelo deputado Rubens Paiva, na Rádio Nacional, no dia 1o de abril de 1964, contra a Ditadura Militar, em que conclama os trabalhadores e estudantes paulistas a se unirem e apoiarem, em greve geral, o então deposto presidente João Goulart.

O efeito de estranhamento inicial é substituído pela contundência que é peculiar ao cineasta, acostumado a tratar de assuntos caros à sociedade brasileira, como a desigualdade de classes, a violência na periferia, o suicídio. Aqui, ao ressignificar imagens, tão distantes do contexto do discurso narrado, o objetivo talvez seja refletir sobre a inércia e uma certa letargia que toma conta da população brasileira, atualmente, diante do cenário político. O demorado take centenário do rosto do senhor de óculos escuros, com expressão atônita diante da máquina de filmar, enquanto a voz de Rubens Paiva ecoa, é a metáfora do verdadeiro horror, ao qual o filme alude.

Já "Domingo", novo filme de Fellipe Barbosa e Clara Linhart, estreou, ontem, nas telas brasileiras, após a exibição no 75o Festival de Veneza. Com roteiro assinado por Lucas Paraízo, o filme não nega as referências ao cinema de Lucrécia Martel, sobretudo, com "O Pântano" (2004). Encontramos aqui, a casa interiorana de uma família gaúcha decadente (financeiramente e moralmente), com personagens, emocionalmente, perturbados, protagonizado um mosaico de situações que beiram o surreal.

As similaridades não param por aí, se lembrarmos da cena em que a matriarca bêbada cai, no filme argentino, derrubando uma bandeja de taças de cristais e a de "Domingo", em que Ritinha está sendo assediada pelo filho adolescente do patrão e deixa algumas taças caírem no chão. Ou quando as crianças vão caçar em "O Pântano" e encontram uma vaca atolada, enquanto que em "Domingo", pais e filhos vão testar a pontaria no meio da mata e afirmar suas virilidades.

No entanto, o resultado alcançado pela dupla brasileira está longe de ser o mesmo da tarimbada cineasta argentina. A história de "Domingo" se passa no dia 1o de janeiro de 2003, data em que Luiz Inácio Lula da Silva toma posse como Presidente da República. Uma família se reúne para comemorar o Ano Novo, mas o clima que toma conta da casa, está longe de harmonioso. Não só há uma animosidade entre pais e filhos, primos e tios, sogra e nora, como um desequilíbrio no comportamento dos patrões em contraponto à lucidez dos empregados.

O filme tenta abarcar várias temáticas- questão de gênero, sexualidade, classe-, além da questão política brasileira, mas o resultado é insatisfatório. Isso dá-se, em parte, por conta da montagem picotada, com ações interrompidas a todo momento, com o intuito de sugerir mais do que mostrar; em parte, por conta do roteiro, que expõe uma diversidade de personagens interessantes, complexos, mas sem a profundidade adequada.

No elenco, Camila Morgado, Ítala Nandi, Augusto Madeira, Martha Nowill, Michael Wahrmann, Ismael Cannapele, Clementino Viscaíno, Silvania Silva.

2 comentários:

Unknown disse...

Pelo jeito o Festival manterá a tradição de ser o mais politizado dos festivais brasileiros.Ainda mai em ano de eleições eleitorais batendo a porta e o clima de discussão política bastante polarizado.

Bangalô Cult disse...

Com certeza. O momento atual potencializa as discussões sobre os filmes e consolida o caráter do Fest Brasília de ser o mais politizado do cenário cinematográfico brasileiro.